Uma gracinha.

Uma gracinha.

Uma gracinha.

 

Fomos a geração mais opulenta do planeta Terra. Viajamos como os nossos avós nunca sonharam, compramos como os nossos pais nunca ousaram e criamos os nossos filhos como se o mundo de ontem, embora já apresentando sinais de cansaço, fosse para eles uma herança líquida e certa. 

 

Tudo era possível e os meus cachorros foram alimentados com ração low fat, sabor picanha gaúcha. Eu também soube tirar proveito e comprei um nariz novo para o meu rosto; fui à terapia e entendi o trauma; misturei feijão, arroz e sushi no mesmo prato do buffet, acreditando que os dias seguiriam sem sinal de rebordose.

 

Sim, a desgraça do mundo se sabia, posta em algum lugar que aprendi a não frequentar à noite. A solução, além de fechar os olhos para a vista desagradável, era fazer mais por mim. Horas extras para comprar uma vida blindada e roupas de corte tão estruturado, que decerto me protegeriam da condição humana de existir. Porque eu paguei o seguro de vida em dia, então achei que o calendário estava sob o meu controle. Mas o que acontece é que, neste ano, não vou poder assistir à Disney Parade.

 

Os aniversários também já não me bastavam e eu achei por bem comemorar mesversários, comprei lembrancinhas para oferecer em um jantarzinho informal e acabei contratando um cerimonial para o velório da família. Só que depois de tanto overdressing e pseudos-fulanos importantes, meu corpo gritava por silêncio. Então, meditei e pensei: “ - Será possível a Terra ser plana?”. Busquei a resposta ecoando #gratidão para todas as pessoas que me amam online, gastando a palavra até que fosse impossível ouví-la sem que doesse o ouvido.

 

Gratidão. Gratidão, por quê? Porque acho que mereço a generosidade da vida, melhor ainda com champanhe. Pelo tilintar das taças nos olhares que se cruzam. Por matar a sede com borbulhas que fazem cócegas ao céu da boca... mas a lucidez chegou em forma de vírus e mandou dizer que acabou o gelo. Ninguém merece champanhe quente, entretanto as geladeiras da pandemia se reservam para outros corpos. 

 

É tempo de existir fora das bolhas, porque quando o copo está cheio de finitude, logo se percebe que não há outro lado da rua ou da cidade.  Por maior que seja a saudade do que vivemos, pouco adianta estar vivo como um bibelô de antes. Sejamos menos perfeitas, mas mais humanas. Não tanto exclusivas, porém mais includentes. Talvez, eu finalmente entenda o valor do conselho, que um dia me disseram, e eu achei uma gracinha: “se passar por alguém sem um sorriso, entregue aquele que era seu”. 

 

Foto: Austin Chan



Autor(a): Alice Maria de Medeiros



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